Celebra-se hoje, 22 de agosto, o Dia do Folclore. Então é oportuno convidarmos Saci-Pererê, Iara, Curupira, Boto-cor-de-rosa, Boitatá, Negrinho-do-Pastoreio, Cuca, Mula-sem-cabeça, Lobisomem e tantos outros personagens ilustres, para um banquete festivo à base de feijoada, baião-de-dois, carne de sol, acarajé, cuscuz, tapioca, beiju, panelada, buchada de bode, moqueca, pé-de-moleque, pamonha, canjica; adoçando a boca com caldo de cana e molhando a palavra com aluá de milho torrado. E depois do banquete, festejar a data ao ritmo do samba, do frevo, do maracatu, do carimbó, do reisado, da quadrilha, do arrasta-pé e do baião de Luiz Gonzaga. Pois tudo isso é, em suma, folclore.
Eu quero, porém, em honra desta data, voltar minha atenção para o torrão onde estão plantadas minhas raízes. Canindé, no meio do sertão cearense, tem muita coisa de folclore para contar e mostrar. E não de agora, mas de muito tempo.
Basta dizer que a paisagem urbana local foi sempre povoada de tipos folclóricos e populares. Os que já se foram continuam vivos na memória de seus contemporâneos que, de boca em boca, contam para as gerações seguintes anedotas e originalidades de personagens invulgares. Se voltássemos aos anos sessenta do século passado, por exemplo, com certeza toparíamos na rua com o jornaleiro Boió e primeiro office boy desta terra. Pois além do pacote de jornais que, de ônibus, ia buscar na capital para distribuir entre leitores, era responsável pela compra de encomendas para sua clientela. E afora essa particularidade, conta-se que Boió era um carnavalesco dos mais entusiasmados.
O elenco da boemia de rua tinha como seus atores mais autênticos o sempre empaletozado Pedro da Nêga, o Cesar Braga, o cambista Chico de Barro, o Antonio da Dunga e outros que as garras do tempo há tempo carregaram.
O anedotário local contou sempre com quengos inspirados e de resposta na ponta da língua. Neste caso, Miguel Carpina é quem puxa o cordão dos causos antológicos a ele atribuídos. No rastro dele, seguiram o velho Bunaco, com suas tiradas da hora, seu Mundim Sampaio e o irreverente Zé Freire, último remanescente dessa fauna admirável, beirando hoje os 90 anos e sempre a postos para narrar suas andanças e aventuras como mochador de boi, cantador, profeta, quiromante, motorista de caminhão e conquistador indomável de corações femininos.
Não há quem, do Canindé de ontem, não se lembre com nostalgia das barracas do rio durante os festejos de S. Francisco, animadas por sanfoneiros e violeiros; e também da Ola do Zoró, da Botija da Biluca, das máquinas de retrato lambe-lambe, das irradiadoras, e ainda de outros tipos populares: os carreteiros Coriolano e Clarindo, o cego Garrote, o Pompílio da Gata, o Manoel Mariola, o Zé Alfaiate… Pois tudo isso é, em suma, folclore.
Porém, voltando dessa turnê ao passado para os dias de hoje, vale a pena lembrar que, logo ali, onde pulsa o coração da cidade, na esquina do Mercado Velho, continua com suas portas abertas uma casa que abriga, conserva, respira e exala o cheiro puro de folclore. A Casa Marreiro, da fachada ao seu interior, é a residência autêntica do folclore da cidade, o quartel-general representativo dos costumes e tradições sertanejos, desde sua fundação, lá pelos idos dos anos quarenta do século passado.
“O museu de quase tudo do sertão”, como foi batizada pelo pesquisador Gilmar de Carvalho, faz jus ao epíteto. Sente-se ali palpitar o coração do vaqueiro autêntico, o repique da viola do cantador de feira, o som do ganzá do embolador, o cheiro de couro, de mato verde, no embalo dos versos de cordel do poeta Natan Marreiro, sequenciador da tradição. Em seu interior, um amplo painel exibe itens peculiares do nosso folclore. O corrimboque, a cabaça, a baladeira, o berimbau, a bainha para foice, o revólver gigante feito de madeira e, acreditem, até suspensório para cobra! Encimando o painel, vê-se a fotografia do poeta e folclorista Raimundo Marreiro, criador de todo esse universo cultural.
Também foi da criação de seu Raimundo, que a Casa Marreiro ostenta ainda hoje os dois símbolos maiores do seu mundo folclórico: o Carrossel do Vaqueiro e a Boneca Gilda. Quando menino, pegado à mão de meu pai, eu ficava minutos admirando o Carrossel, acima do portão principal, girando com os dois vaqueirinhos correndo atrás do boi e tocando regularmente o chocalho. A obra engenhosa continua sendo atração pública, é conhecida até no exterior e já tem sua réplica em importante centro cultural de Fortaleza.
Gilda, por sua vez, nasceu lá pelos idos de 1960. De estatura acima da média, loira, olhos claros, bem vestida e pintada, é alvo constante de tietagem e dos chamados selfies. Viúva desde o rigoroso inverno de 1974, quando o marido, Gildo, foi levado por cheia memorável do rio Canindé, Gilda tornou-se decisivamente celibatária. No carnaval, a Boneca do Marreiro – seu nome mais popular – deixa seu trono e desfila pelas ruas de Canindé, manipulada discretamente por um condutor. Afora essa fortuna folclórica da Casa, contemporâneos do seu fundador recordam ainda o Circo da Onça, os reisados e os testamentos de Judas da lavra do saudoso poeta Raimundo Marreiro, um gigante benfeitor da cultura popular.
2 Comentários
Poeta PPP, você esqueceu de mensionar o ROBERT FOX, sempre ” limpo, cabelo e barba de tratados” o tio Bicão, Antônio Machado e seu grupo de reisado, a Sariola, o Bruno esmoler, a Nena do Dr. Pedro, o VTL, que na ausência da guarda trânsito, ele todo fardado, fazia as vezes de controlador de trânsito, o Zé Mocotó que piloto de uma carroça de tração animal e fazia a coleta do lixo da pequena Canindé, a Madalena do Boió, a Cilá a puxar as procissões e enterros, suas paródias nas campanhas políticas e as causos avantajados do Neuso (Cireneu Lessa).
De fato, Dr. Pedro. O elenco é grande!