Domingo que vem, 12 de outubro, é Dia da Criança. Em torno dessa data lúdica, mergulho fundo no baú das minhas recordações, pedindo licença ao caro leitor, para puxar um pouco de brasa para a sardinha da minha infância. A fotografia que ilustra esta crônica é uma das poucas que restou da minha meninice vivida na zona rural. Na imagem, malconservada, estou sentado no balcão da bodeguinha de meu pai, um pequeno comércio de beira de estrada. E junto a mim seguro um gato. Nessa época, vale dizer, eu tinha uma fazenda de gatos, com um rebanho estimado em cerca de dez cabeças, do qual cuidava com todo desvelo.
Nesse mesmo balcão, durante as tardes, quando cessava a freguesia, meu pai, que não teve chance de conhecer o alfabeto, sentava-me para ler folhetos de cordel, diante de uma plateia formada por ele e amigos dele, habitués do modesto comércio. Folhetos que ele comprava na feira, em Canindé, e que foram, inclusive, meu primeiro contato com o mundo da leitura.
Certa vez, aconteceu-me um fato inesquecível. Contava eu uns oito anos, a idade lírica que inspirou o poeta Casimiro de Abreu a escrever o seu imortal poema. Pois bem. Um amigo de meu pai, fazendeiro da região dos Inhamuns, viajava regularmente do sertão para Fortaleza, onde os filhos residiam e estudavam. E tinha como parada certa a bodega de meu pai. Ambos se tratavam amistosamente como compadres. Falavam de chuva e de seca, do preço dos gêneros, de coisas do sertão. Certa feita, seu Totonho, como era conhecido, chegou no começo da tarde, estacionou sua caminhonete e deparou-se comigo sentado no balcão, concentrado em minha pilha de folhetos de cordel. Cumprimentou meu pai, apertou-lhe a mão, olhou para mim, depois novamente para meu pai, e perguntou:
– Compadre Pedro, esse seu menino sabe mesmo ler verso? [verso, por esse tempo, era sinônimo do que se chama hoje cordel].
Meu pai respondeu:
– Faça um teste, compadre.
O homem puxou um dos folhetos da minha coleção, e disse:
– Leia este.
Era o famoso cordel de gracejo A chegada de Lampião no inferno, um clássico do poeta paraibano José Pacheco. Meu pai fez um sorriso e disse:
– Esse aí, ele sabe decorado.
O homem olhou-me sério e emendou:
– Pois se ele disser de cor, sem errar uma palavra, na próxima semana ele vai ganhar um carneiro que eu vou trazer da minha fazenda.
Em seguida, abriu o folheto diante dele e ordenou:
– Vamos, menino, comece.
E eu, sem sequer fazer pontuação, quase cantando e de olhos quase fechados, mandei brasa: “Um cabra de Lampião / Por nome Pilão Deitado / Que morreu numa trincheira / Num certo passado, / Agora, pelo sertão, / Anda correndo visão, / Fazendo mal-assombrado”. E tá, tá, tá…
Desafio vencido, negócio fechado. Ganhei o carneiro, um animal de médio porte, coberto de lã abundante e no qual, por muito tempo, eu passeei montado, estimulando-o com um chicotezinho de couro que meu pai mandou fazer.
Há certas alegrias que não mais se repetem em nossa vida. Por essa mesma época, eu já devia contar dez anos, ganhei de meu pai uma bicicleta Monark novinha em folha. Não dimensiono o tamanho da minha alegria, porque não há uma escala num coração de menino para definir tanta felicidade. Era uma bicicleta vermelha, o mais recente modelo da época. Ainda sou capaz de sentir o cheiro dela, de senti-la. À noite, colocava-a perto da minha rede. E já amanhecia com uma flanela na mão, para lustrá-la. Em seguida, os passeios nos arredores da moradia. Comecei então a enfeitá-la de tudo: para-lamas, duas buzinas, uma a pilha, outra fon-fon, farol com dínamo ligado ao pneu traseiro, pisca-piscas, decalques, fitas nos aros, limpa raios, capa da sela com o emblema do meu time, luvas decoradas no guidom… Tudo o que uma bicicleta de estimação merecia de adornos.
Havia em Canindé uma loja chamada “O Bazar das Bicicletas”. Era uma tentação. Todo tipo de enfeite encontrava-se lá. Meu pai, que não me negava nada, dentro da sua modesta condição, dava-me dinheiro para comprar aquela infinidade de mimos para bicicleta. De modo que a minha Monark era, podia-se dizer com garantia, a rainha das bicicletas.
Perdoem-me, mas estou falando de uma época quando ainda havia infância e meninice. Até parece que os humanos, hoje em dia, já nascem adultos, com um smartphone amarrado ao cordão umbilical. Eu tive infância. Ou, como diz aquela bonita canção: “Eu era feliz e não sabia”.
Diante destas recordações simplesmente sumárias e tão somente minhas, evoco mais uma vez o poeta Casimiro de Abreu, para ouvir dele o eco do seu profundo grito: “Oh! dias da minha infância / Oh! meu céu de primavera”.
3 Comentários
Texto irretocável, poeta!
Não posso deixar de destacar esse seu arremate que, na verdade, abarca toda a nossa geração: “Eu tive infância”.
Parabéns!
Obrigado, poeta Arlando Marques! Nós tivemos infância matuta, a mais feliz de todas!
Falar da infância, é um privilégio pessoal, da vida, é uma dádiva oferecida aos deuses por seguir em busca do elo final de um ciclo que a vida nos propõe por dádivas de Um Ser Criador, O Arquiteto do ser material, Nós, como seres humanos.
Obrigado por me esperar “à vida”, através de sua narrativa de infância aos tempos atuais! Um abraço do amigo: Blaudes Barros